Treinando no Quênia

Marc Roig, corredor de elite da Espanha, contou pra gente como é passar uma temporada de treinos no Quênia, país berço de grandes corredores.

Marc Roig é corredor de elite espanhol e fisioterapeuta. Gosta de combinar a corrida com viagens e tem, como seus melhores tempos, 1h04’57” em meia maratona e 2h18’08” em maratona, este último conquistado justamente na última edição da Maratona de Barcelona (06 de março de 2011), para a qual o atleta teve treinamento especial no Quênia.

E é justamente sobre estas semanas de treinamento no Quênia que Marc Roig fala em seu texto abaixo, exclusivo para o Correr pelo Mundo:

Treinando para a maratona no Quênia

por Marc Roig

De todas as provas, a maratona é a que apresenta mais mística; de todos os países, o Quênia é que mais atenção dedica à maratona. Ter a oportunidade de se preparar para uma maratona no Quênia é um sonho de todo o atleta, seja qual for o seu nível.

Durante as últimas quatro semanas estive treinando no Quênia, na província do Vale do Rift, e posso afirmar que é um luxo; não um luxo em termos de conforto, que normalmente é escasso, mas sim um luxo para as pernas, os pulmões, o coração e, em especial, a companhia que se tem ao correr.

Esta não foi minha primeira experiência no Quênia e, por isso, já tenho algumas estórias por lá. Em primeiro lugar, costumo treinar em Eldoret, que é a capital da província do Vale do Rift e, como todas as cidades maiores, não é o melhor lugar para se treinar, mas oferece outras comodidades. Talvez o melhor lugar para se treinar seja Iten, uma vila de cerca de 4.000 habitantes, onde a maioria são corredores e dessa maioria, muitos já ganharam alguma maratona na Europa, América ou Ásia. Digo que Iten é melhor que Eldoret porque está a 2.400m acima do nível do mar (enquanto que Eldoret está a 2.000) e porque não há tantos carros, movimento ou barulho como em uma cidade maior. Mas sempre fiquei em Eldoret, onde já tenho amigos, assim que uma coisa acaba por compensar a outra.

De qualquer forma, ainda que costume treinar sozinho quase todos os dias, de vez em quando vou a Iten para me juntar a algum grupo (às vezes com mais de 50 atletas) para uma sessão de treinos com eles. Mas não o faço sem razão, pois gosto de seguir meu plano de treinamento e, acima de tudo, porque são muito melhores que eu e, treinando diariamente naquele nível, sofreria alguma consequencia.

Treinar na altitude não é fácil, e a prudência acaba sendo a ferramenta mais útil para se chegar ao êxito. Nos primeiros dias, por exemplo, se pode ter a sensação de que não é tão difícil, mas logo se descobrirá que o difícil não é fazer uma sessão forte de treino, mas sim recuperar-se dela. É muito importante planejar bem o volume e as sessões fortes (séries, fartleks ou longões), que, no meu caso, não superam três vezes na semana.

O horário habitual para os treinos também é diferente, ou pelo menos é muito diferente do horário espanhol. É muito comum correr às 6h da manhã, ao começar o dia e sem comer nada antes. A esta hora, centenas de corredores saem a trotar pelos caminhos de Eldoret e de Iten, assim como em muitos povoados vizinhos (Kaptagat, Kapsabet, Kabarnet…). O trote da manhã costuma ser suave e não é comum passar de uma hora – eu, por exemplo, costumo fazer 50 minutos de trote.

Depois desta primeira sessão, com as temperaturas a cerca de 15ºC ou até menos, é hora de se alimentar. No café da manhã queniano não falta chá (normalmente bem doce) e também são comuns os ovos fritos (fritos nos dois lados), o pão de sanduíche como herança britânica e às vezes os “chapatis”, uma espécie de torta ou panqueca. Mas o certo é que nem todos os quenianos podem se permitir um café da manhã tão completo, especialmente os que ainda não conseguiram sair do Quênia para competir – em alguns casos, é comum que alguns dos atletas saiam para sua segunda sessão de treinos tendo consumido apenas um chá.

Esta segunda sessão se costuma fazer às 10h, e à medida que o tempo passa, o calor é quase que insuportável. Se é um dia de séries, normalmente nas terças-feiras, o habitual é fazer séries de 400 ou 600 e por vezes de 1000, com as recuperações de 200m com trote, por exemplo. Se o grupo é grande, alguém pode ficar atrás e tentar não ultrapassar, mas os quenianos também tem dificuldades para treinar e são muito agradecidos (além de insistirem) quando alguém pode marcar o ritmo de vez em quando.

Nas quintas, por exemplo, é dia de fartlek, que significa “brincar com os tempos” e, portanto, o treino consiste em fazer trocas de ritmo de 1 minuto ou 2, ou até mesmo de 3, onde a recuperação é quase sempre de apenas 1 minuto. Durante minha última estadia no Quênia, participei de dois fartleks. O primeiro deles variava entre 3, 2 e 1 minutos, sempre com 1 minuto de recuperação; ao chegar no final, se invertia para 1, 2 e 3 minutos. No total, os fartleks costumam durar 50 minutos, sem contar o aquecimento. No segundo treino de fartlek, foi a vez de um minuto forte e outro menos, e assim foi por 25 vezes.

Nos outros dias da semana, a segunda sessão consiste de um trote que pode ser mais ou menos rápido, ainda que também é verdade que os quenianos regulam muito bem seus esforços e se não é dia de acelerar, se conformam em trotar com um pace de 5min/km ou mais.

E, no final de semana, é dia de longão. O que surpreende é que, inclusive atletas de 800m rasos se animam a trotar, de maneira rápida, por até 30 ou 35km. Estas rodagens costumam começar com muita calma e o ritmo se acelera até o esgotamento do atleta; nestes treinos, é fácil começar (mas não terminar) com atletas com tempos de menos de 2h08′ em maratonas.

E como a religião é uma parte fundamental do dia-a-dia dos quenianos, muitos atletas aproveitam o domingo para descansar. As igrejas, tanto as católicas como as protestantes, ficam lotadas, e os cantos podem ser ouvidos pelos arredores. É o momento de descansar, comer bem e se preparar para a semana seguinte.

Quanto à comida, a dieta queniana é completa, mas um pouco monótona. Alguns pratos formam a base quase que exclusiva da alimentação, como é o caso do ugali (farinha de milho fervida e dela feita um purê), githeri (feijões vermelhos com grãos de milho), sukuma wiki, (algo parecido com espinafre), matoke (purê de banana verde com batatas) e arroz. Como se pode observar, há abundância de carboidratos, e a fonte de proteína se concentra no leite e nos ovos; a carne, por mais que se goste, só faz parte do prato quando o dinheiro permite e, ainda assim, na maioria dos casos o gado já tem muita idade, tornando difícil a mastigação.

Ao contrário da Espanha (não sei se no Brasil é assim), o frango é mais caro que a carne de gado, tornando-se, assim, um alimento de luxo para muitas pessoas; o mesmo acontece com fígado, que é muito rico em ferro e que favorece os glóbulos vermelhos, e acaba sendo parte da alimentação somente em ocasiões muito especiais. E uma ocasião especial pode ser a de ter convidados de honra, como estrangeiros.

Ser convidado a uma casa queniana é algo comum, e fazer parte de uma refeição é indispensável. De fato, visitar uma casa e não participar de uma refeição é considerado quase que um insulto. Os anfitriões sempre lhe receberão de forma fantástica e, se possuem alguns animais em casa, pode ser que algum deles seja morto para honrar sua visita (normalmente uma galinha ou um galo). E se possuem vacas, é possível que lhe ofereçam o mursik para beber.

O mursik é a carta de apresentação da tribo Kalenji (uma das 42 tribos do Quênia e a que mais atletas produz). É basicamente leite azedo, que se consegue fermentar do leite fresco previamente fervido, deixando-o descansar por uns dias. Depois, a água produzida é descartada, agitando o que restou, enquanto que se adicionam algumas cinzas das árvores locais como forma de adicionar mineirais à bebida. O gosto é ácido pelo ácido lático, o que faz desta bebida uma boa alternativa para os intolerantes à lactose.

Enfim, se podem contar muitas coisas do Quênia, mas fico por aqui. O que não posso deixar de fazer é recomendar uma visita ao país. Sei que o voo é caro, mas a hospedagem é econômica e é uma experiência para se lembrar pelo resto da vida. Além disso, a malária já se torna rara e os medos e prejuízos que alguém possa ter ao viajar para a África desaparecem ao chegar. O Quênia é um destino muito seguro e preparado para o turismo. Ânimo, pois o Vale do Rift te espera.

Marc Roig também escreve em seu site pessoal: http://carrerasdelmundo.blogspot.com/